Como a China Pretende Vencer a Guerra Comercial com os EUA
“O presidente Trump não entende A Arte da Guerra“. A afirmação do economista chinês Li Daokui, “garoto de ouro” de Harvard e um dos mais respeitados acadêmicos da prestigiosa Universidade Tsinghua, veio menos de uma hora depois de Pequim anunciar nova rodada de retaliações às tarifas americanas impostas na quarta-feira (9).
Li traçou um paralelo provocativo entre o best-seller de Donald Trump, “A Arte da Negociação”, e o milenar tratado estratégico chinês “A Arte da Guerra” escrito por Sun Tzu há 2.500 anos. Li já foi conselheiro do Banco Central chinês e sabe do que está falando.
“Se Trump quer garantir que sua ‘Arte da Negociação’ funcione, ele deve entender ‘A Arte da Guerra’. Um dos princípios fundamentais é que você precisa conhecer seu inimigo e a si mesmo para vencer. O presidente Trump certamente quer vencer, mas não conhece a China o suficiente”
Um dos pontos mais surpreendentes da análise de Li é que a estratégia chinesa de fortalecer o mercado doméstico já estava em andamento bem antes da atual escalada de tensões.
“O lado chinês já decidiu, no final do ano passado e também no início de março, estimular o consumo interno. O governo chinês chama isso de Ação Especial para Impulsionar o Consumo Interno. Existem dez tarefas e impulsionar o consumo é a número um”
Segundo Li, essa estratégia beneficiaria tanto os EUA quanto a China: “Na verdade, é uma jogada vantajosa para todos. Os consumidores chineses ficam mais felizes, seus produtores ficam mais felizes, os produtores americanos ficam mais felizes e o déficit comercial dos EUA diminui”.
Para o acadêmico, Trump desconhece essa realidade, o que demonstra uma “falta de conhecimento da situação chinesa” que ele classifica como “muito lamentável”.
O “Efeito Trump” está acelerando reformas chinesas
Contrariando a percepção de que as tarifas americanas prejudicariam significativamente a economia chinesa, Li apresenta uma visão surpreendente: as pressões de Washington podem, na verdade, acelerar reformas estruturais necessárias em Pequim.
“A longo prazo, cinco, dez anos depois, podemos descobrir que essa guerra tarifária foi aceleradora das reformas necessárias da China”
Li compara a situação atual ao que ocorreu com gigantes tecnológicas chinesas como Huawei e DeepSeek, que fortaleceram capacidades próprias após sanções americanas:
“Sete anos atrás, os EUA começaram a impor restrições às empresas de tecnologia. Isso despertou as empresas chinesas para pesquisa e desenvolvimento locais. Você vê a Huawei adotando o HarmonyOS como sistema operacional, que agora é o mais avançado para veículos elétricos e direção automática. E o DeepSeek está desenvolvendo tecnologia para reduzir o custo do aprendizado de máquina”
Números que sustentam o otimismo chinês
Com uma segurança notável, Li apresenta dados econômicos para justificar por que Pequim pode suportar uma guerra comercial prolongada:
“As exportações diretas da China para os EUA representam 2,77% do PIB chinês. E o déficit orçamentário anunciado pela China é de 4% do PIB. O lado chinês pode facilmente aumentar seu déficit orçamentário de 4% para 6,77%”
Li explica que a China tem grande margem de manobra fiscal, com o governo central tendo apenas 25% da dívida em relação ao PIB. Além disso, medidas como a flexibilização de restrições à compra de imóveis nas grandes cidades chinesas e a liberação de compra de motocicletas em mais de cem cidades poderiam impulsionar rapidamente o consumo interno.
“O governo chinês pode aumentar seu déficit orçamentário e subsidiar o consumo interno. O efeito multiplicador de 1 yuan ao subsidiar o consumidor chinês resulta em 4 yuans de consumo“, e cita experimentos realizados em Xangai para embasar sua teoria.
Uma nova ordem global sem os EUA?
Talvez a previsão mais ousada de Li seja sobre o futuro da globalização. Para ele, a China está se preparando para liderar uma nova ordem econômica mundial que poderia, se necessário, funcionar sem os Estados Unidos.
“A China trabalhará com todos esses países, Brasil e países do Sudeste Asiático, com muito cuidado para compensar o impacto dos EUA. A China trabalhará com esses países para reiniciar um sistema de investimento e comércio global sem os EUA”
Li não vê isso como retaliação, mas como consequência natural: “Porque os EUA estão cansados, muito exaustos. Os EUA não estão mais dispostos a liderar a globalização”.
Ao ser questionado se acredita que a globalização pode sobreviver sem os EUA, Li é enfático: “Essa é a minha forte convicção. Escrevi artigos acadêmicos sobre isso, temos uma teoria sobre a liderança da globalização. Explicamos não apenas por que os EUA não estão dispostos a liderar a globalização, mas também por que a China está interessada em desempenhar o papel de liderança”.
Apesar do tom crítico em relação às ações de Washington, Li mantém certo otimismo diplomático: “Sendo economista, estou otimista. Acredito que ambos os lados eventualmente negociarão para chegar a um acordo razoavelmente eficaz”. Segundo ele, nas próximas semanas, há esperança de que “os dois lados se comuniquem para colocar as cartas na mesa e chegar a um acordo”.
Uma guerra comercial em escalada
A entrevista com Li Daokui ocorre em um momento particularmente tenso nas relações EUA-China. Pequim anunciou novas tarifas sobre produtos americanos em resposta às medidas impostas por Trump no início do mês.
A escalada atual representa o mais significativo confronto comercial entre as duas maiores economias do mundo desde 2018, quando a primeira rodada de tarifas mútuas desencadeou profundas transformações nas cadeias de suprimentos globais.
Analistas de mercado projetam que, se mantido o atual ritmo de retaliações, o impacto na economia global pode ultrapassar US$ 1 trilhão até o final de 2025. Enquanto isso, o Brasil e outros parceiros comerciais importantes da China observam atentamente, com a possibilidade de se beneficiarem do redirecionamento de investimentos chineses.
Por hora, enquanto os líderes em Washington e Pequim trocam acusações, a análise de Li Daokui sugere que, nos bastidores da guerra comercial, a China pode estar planejando algo muito mais ambicioso: não apenas resistir às pressões americanas, mas redesenhar fundamentalmente a ordem econômica global. Tudo no melhor estilo “Sun Tzu” de guerrear.
Quem é Li Daokui ?
Economista chinês, professor de economia da cátedra Mansfield Freeman e diretor do Centro para a China na Economia Mundial (CCWE) na Escola de Economia e Gestão da Universidade Tsinghua. Estudou em Harvard e passou por Stanford e Michigan Ann-Harbor.